Querido diário...

Quando ele acordou o sol já estava alto lá fora. Seu bocejo estremeceu as paredes e fez as criaturas pequenas que co-abitavam sua casa se esconderem em busca de abrigo.

Ele coçou o pescoço com uma mão grande e peluda. Em sua boca um gosto de coisas mortas. Esse pensamento o fez sorrir. Coisas mortas na boca. Rê, rê.

Se ergueu em meio à gosma e coxeou até a beira do lago, para ver seu reflexo. No caminho tropeçou em um capacete amassado. Ele também estava amassado. Sempre acordava amassado. Sorriu de orelha a orelha. Um peixinho fugiu apavorado. Era o único peixinho ali. Ele o mantinha porque gostava de o ver se assustando e fugindo de seu sorriso todos os dias.

Abriu a boca e examinou os dentes pontudos. Havia coisas não identificadas presas neles. Pôs a língua bifurcada para fora, longa, chegando quase no pescoço. Um cheiro de podre lhe invadiu as narinas e quase o fez vomitar. Fechou a boca rápido. Tão rápido que quase mordeu a língua cumprida.

Considerou as virtudes de começar a escovar os dentes. Não. Que graça a vida teria assim. Escovar os dentes. Que pensamento esquisito.

Se coçou e um tufo dos fungos que nasciam sob um de seus braços caiu no chão. Ficou chateado. Gostava daqueles fungos, lhe davam um ar perigoso e ao mesmo tempo ecológico. Era preciso pensar na ecologia nesses tempos.

Detestava segundas-feiras meio que por princípio. Não era como se alguém fosse lhe obrigar a acordar cedo e levantar para o trabalho. Mas de alguma forma queria ser solidário com quem estava nessa situação.

Ainda estava um pouco sonolento. Culpa da noitada de ontem. Não tinha mais idade para esses comportamentos juvenis. E que noitada. Os aldeões falariam daquela noite por gerações. Os sobreviventes falariam, com certeza. E esta prometia ser uma semana cheia. Se espreguiçou lamentando não ser mais um jovem cheio de energia.

Pegou os fungos caídos no chão e foi para a cozinha, pensando em misturá-los com uns filhotinhos que mantinha presos ali para o café da manhã. Tropeçou em uma espada. Chutou a porcaria para o lado, para baixo de uma cota de malha caída ali perto.

Enquanto torcia o pescoço dos gatinhos repassou, mentalmente, a agenda da semana: Uma provável donzela na floresta (sempre havia uma); algumas crianças perdidas (era incrível como os pestinhas viviam se perdendo. Culpa dos pais. Não sabem mais educar os filhos); dois vilarejos para aterrorizar e alguns fazendeiros que tem ficado valentes e expandido suas roças para estes lados. E claro os cavaleiros. Toda semana havia pelo menos uma meia dúzia deles. São como moscas, só que mais crocantes. Armaduras brilhantes, ameaças elaboradas e nem uma gota de bom senso. Que tipo de homem busca a “glória” de ser comido dentro de uma armadura, como um atum em uma lata?

O pensamento lhe atiçou a fome. Os gatinhos que já estavam com um cheiro gostoso no escudo que usava como panela. Era um belo escudo. Decorado como motivos equestres e o brasão de uma casa nobre e tradicional. Não ajudou muito o antigo dono. Um careca que dava uns gritinhos agudos enquanto era desmembrado. Mas havia se tornado uma ótima panela. Sempre cozinhava filhotes nela. Tipo uma wok, daquelas em que se faz yakissoba. Já pensara várias vezes em fazer um yakissoba no escudo, não lhe faltava carne em cubinhos, mas tinha dificuldades em lembrar de trazer o macarrão. Sempre que ia aos vilarejos eram tantas distrações. Dificilmente conseguia fazer as pessoas pararem de gritar para se informar sobre o endereço do mercado.

Ouviu um galope se aproximando da porta da caverna. Primeiro confiante, depois, mais lento, algo meio vacilante. Isso sempre acontecia quando encontravam os esqueletos. Bom. Confiante ou não, era um cavaleiro, a semana começara oficialmente. Engoliu os gatinhos se congratulando pela ideia de os preparar com os cogumelos. Belo toque. Tinha jeito com culinária.

Enquanto ia em direção à entrada da caverna tropeçou em uma lança. Praguejou e a arremessou para o lado. Precisaria fazer algo sobre aquelas armaduras todas. Talvez o ferreiro as compre por peso.

Aquilo não era jeito de um monstro decente viver.

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